sábado, 23 de agosto de 2008

TERAPIA

"O principal objetivo da terapia psicológica, não é
transportar o paciente para um impossível estado de
felicidade, mas sim ajudá-lo a adquirir firmeza e
paciência diante do sofrimento. A vida acontece num
equilíbrio entre a alegria e a dor."

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

NOSSA PRÁTICA


Para discorrer a respeito da psicoterapia existencial, primeiramente é mister abordar a psicoterapia de um modo geral.
(Larissa Tonello)
Segundo Angerami (2003), a psicoterapia englobando todas as abordagens teóricas, se refere a um processo que leva o paciente ao “autoconhecimento, autocrescimento e a cura de determinados sintomas”, como também, um processo que segue uma determinada seqüência, um período de tempo comumente longo, no qual sentimentos e questionamentos se articulam conforme a teoria sustentada pelo psicoterapeuta. Os papéis na psicoterapia são bem definidos, onde o psicoterapeuta é aquele que ajuda e o paciente é ajudado. A ajuda proporcionada pelo psicoterapeuta se dá pela reflexão junto ao paciente sobre vários aspectos da sua vida, detalhes de seu sofrimento, maximizando sua percepção para que ele possa agir em direção á mudanças que sejam significativas em sua vida. Contudo, o psicoterapeuta deve se ater aos ideais desse processo respeitando seus limites, assim como, seus objetivos conceituais.

Portanto, as características citadas acima a respeito do processo de psicoterapia em um modo geral, são importantes e devem ser respeitadas pelos psicoterapeutas em qualquer que seja a abordagem teórica adotada pelos mesmos.

A terapia sob a ótica do existencialismo, permite que o paciente construa seu caminho e o enredo de sua vida sem nenhum pressuposto apriorístico, sendo ele próprio quem determinará as explicações sobre os fatos que estão prendendo sua existência. Logo, não deve se ater ao passado como a causa de seu sofrimento, ou seja, como se tudo que ocorreu há muito tempo atrás determinasse seu sofrimento atual. Assim, no processo de psicoterapia, “o paciente é visto enquanto totalidade senso perceptiva e não como um ser dicotomizado em diversas partes que muitas vezes nem sequer se tocam ainda que tangencialmente” pág. 94.

Contudo, a abordagem existencial contribui para que a pessoa que procura a ajuda perceba coisas que sozinha não esta conseguindo ter uma percepção mais totalizada. Coisas estas, relacionadas à própria vida e priorizando sua singularidade. Portanto, a pessoa não esta conseguindo sozinha compreender os fatos e os determinantes que estão acorrentando sua vida, e não esta conseguindo desvendar os possíveis caminhos para se livrar do sofrimento.

A psicoterapia pode ser o processo apropriado para levar o indivíduo ao autoconhecimento, promovendo uma reflexão a respeito daquilo que pode estar sendo estimado decisivo, do mesmo modo as razões que podem estar impedindo seu desenvolvimento pessoal. Prontamente, o psicoterapeuta será aquele que estará na condição de ajuda, ou seja, será capaz de refletir com isenção emocional sobre os fatores que estejam levando o paciente a níveis tão profundos de sofrimento. Dessa forma, a partir do autoconhecimento será promovido também o autocrescimento, pois, na medida em que as perspectivas existenciais se maximizam, ocorre também uma alteração dessas perspectivas existenciais, superando-se os obstáculos da própria existência.

O enquadre teórico filosófico da psicoterapia existencial tem uma postura mais libertária, assim, para compreender a condição humana nessa abordagem, há um rompimento com os padrões da psicologia tradicional que centraliza no passado e em conceituações de nexo causal. Deste modo, esse enquadre teórico filosófico, remete a novos paradigmas para compreender o ser humano, direcionando a psicoterapia de um modo em que o paciente é compreendido como único, ou seja, cada individuo tem sua condição enredada por uma subjetividade, uma realidade e constituição senso perceptiva única de cada um, e não como uma máquina que esta desregulada e precisa de ajustes técnicos.

Para ter uma compreensão mais abrangente á respeito da psicoterapia existencial, se faz necessário destacar alguns conceitos existencialistas estipulados como sendo fundamentais para se compreender essa abordagem.

Por conseguinte, para o homem comum e para a filosofia tradicional, o ideal supremo é alcançar uma vida de tranqüilidade e isenta de sofrimentos, na qual a felicidade plena esteja presente. Os existencialistas rebatem essa posição, crendo que não é possível esse tipo de idealização, pois, são inerente e indissolúvel da existência humana, algumas ingremidades existenciais como a angústia, solidão, tédio, morte, entre outras. Nesse sentido, é difícil pensar em realizações humanas descartando os sofrimentos a ela inerentes, isso não quer dizer que os existencialistas só exploram o lado trágico da existência, apenas buscam refletir sobre conhecidas formas da existência, assim, não tem como excluir da discussão temas que transmitam ao homem sofrimento e desespero.

Na ótica existencialista, a angústia não é compreendida como uma forma de patologia, mas como inerente à condição humana. Sendo o papel dos existencialistas conforme seus valores, libertar o homem dessas formas adulteradas e enfermas de angústia.

Para Sartre, “o homem esta condenado a ser livre”, esta citação define a necessidade de uma redimensão da existência. Segundo Angerami (2007), “Condenado, porque não criou a si próprio, e, no entanto, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. Este passa a ser um dos principais valores existencialistas: a liberdade para assumir a totalidade dos próprios atos” p.15.

Não basta falar apenas da psicoterapia existencial sem abordar os temas considerados principais para o existencialismo, os quais também estão presentes no processo de psicoterapia.

Liberdade:

No linguajar popular a liberdade é utilizada para determinar situações as quais as pessoas resolvem determinados objetivos, não é livre aquele que não tem condições para tal. Na política liberdade possui conotação própria, possui liberdade quando apresenta - se condições de expressar vontade e opinião, isso acontece através do voto, como também através de manifestação de idéias contrárias a ordem estabelecida.

Porém, o existencialismo propõe outra reflexão sobre o termo liberdade, se para esse pressuposto teórico filosófico a existência precede e comanda a essência, portanto, a liberdade se explica como fundamento de todas as essências, dessa maneira não se trata de uma propriedade ou de uma tendência acrescida a minha natureza. Segundo alguns filósofos tradicionais é a capacidade de realizar objetivos previamente propostos. Logo, sendo um ser livre o homem decide sua própria vida, arcando com a responsabilidade de sua escolha. “O homem é livre por necessidade ontológica, e qualquer tentativa de fugir dessa condição, é por assim dizer uma forma de quietismo” p.16.

Sartre salienta que a liberdade é o que precisamente me estrutura como homem, porque é uma designação especifica da própria qualidade de ser consciente, de poder negar, de transcender. “A liberdade é o que define a minha possibilidade de me recusar como coisa, projetando-me para além disso, ou, se quiser, para além de mim” p.17.

Portanto, assumindo a liberdade como um dos principais valores da existência, assume - se a própria ação, assim, sujeito e ação terão a mesma congruência.

Solidão:

A solidão também é um termo que auferiu outra dimensão segundo os existencialistas, consistindo - se como inerente à existência humana e não um fenômeno isolado que acomete somente algumas pessoas. A visão popular sobre a solidão é a de que, é um sentimento doído que as pessoas sentem em determinados momentos. Mas sob a ótica a qual estamos discorrendo, solidão é uma condição que faz parte da vida, porém em alguns momentos a apreendemos de forma mais aguda e assim muitas vezes não sabemos como lidar com isso.

Mesmo vivendo em comunidade, em família, em grupos, chegará o momento em que perceberá que para realizar os objetivos pessoais, cada pessoa depende somente de suas possibilidades pessoais. Portanto, por mais que se interaja socialmente é impossível evitar, a certeza de ser só. Nasce e vive só, deixando esse aspecto somente quando morre. Na maioria das vezes a solidão esta associada com o desespero, com o sofrimento e com o suicídio, é como se muitas pessoas não agüentassem a condição de ser só, então se desesperam.

É difícil entrar em contato com a solidão, mas a partir do momento em que se consegue compreende - la, constatando que cada um é único com sua história individual, percurso próprio, biografia própria, maneira própria de buscar sentido para vida, se percebe então que ela demonstra a altivez da condição humana.

Contudo, quando se fala que a solidão faz parte da existência humana, assume - se a condição de ser único, e com isso, a responsabilidade com relação à dimensão dada à existência.

Essência:

Essência é definida etiologicamente como “a natureza intima das coisas, aquilo que faz que uma coisa seja o que é ou lhe dá a aparência dominante, aquilo que constitui a natureza de um objeto” p.22.

No entanto, os existencialistas alegam que a existência precede a essência. Sendo o homem o único ser no qual a existência precede a essência, é um ser que existe antes de ser definido por algum conceito, ou seja, esta é a realidade humana. O homem surge no mundo, existe, se descobre, e só depois se define.

O pensamento determinista que predomina nas mais diversas ciências contemporâneas, coisifica o homem, pois determina a ele os próprios sentimentos em conceituações incomuns.

Ao contrário da árvore, por exemplo, que se desenvolve a partir da essência de sua semente e que seu desenvolvimento é determinado pelas condições climáticas, e com isso não se altera sua essência, a essência humana tem condições de se desenvolver e se transformar segundo os projetos de vida estabelecidos pelo próprio homem. Portanto, a essência do homem não deve ser considerada estática ou repetição de fenômenos a partir de fatos ocorridos no passado. Essa condição permite ao homem reconstruir sua vida cada instante.

O ser no mundo:

Para o existencialismo, o homem se compõe ao que é externo a ele, misturando - se. “O ser no mundo implica uma luta constante do homem consigo próprio para não perder sua dignidade existencial e suas características individuais” p. 26. O homem existe, pois está na condição de ser no mundo, não apenas em sua relação corpórea ou por ocupar um lugar no espaço. O homem é o ser que existe ao oposto de outros seres e objetos que somente são.

O ser está no mundo, e este fato ocasiona muito sofrimento e desespero, em um mundo com regras e normas, morais, éticas, políticas, religiosas, e isso muitas vezes acaba limitando as possibilidades existenciais. No entanto, o ser no mundo traz também a questão de que o homem é o único ser que constrói seu ambiente de vida, diferente dos animais que habitam determinado ambiente sem condições de transforma - lo ou mesmo de se adaptarem noutro ambiente.

A existência traz em si aspectos desesperadores como a solidão, porém é a questão do ser no mundo que o direciona ao encontro da consciência do outro, e com isso, forma - se a própria relação da percepção de si, do outro, e consequentemente do mundo. O homem é capaz de criar e até mesmo complicar a compreensão de sua existência, partindo de sua condição de ser, um ser capaz de alcançar a transfenomenalidade do fenômeno de ser. Contudo, o homem é um ser transfenomenal que se percebe enquanto fenômeno e se anuncia no fenômeno como um além deste.

Morte:

Para falar sobre a morte na visão existencialista, Sartre um dos principais filósofos existencial aponta que, a morte é a ocorrência que determina o fim da existência, finalizando todos os projetos elaborados. Por outro lado Heidegger também importante filósofo existencial coloca a morte como fazendo parte da vida.

O ato de morte interrompe a existência humana, determina á existência o fim dos seus planos e ilusões. Portanto, a morte é o acontecimento mais concreto da existência humana, mas muitas vezes, exerce a condição de algo desagradável na vida do ser humano.

O sentido da vida:

É através das suas realizações que o homem existe, a vida enquanto existência única e isolada não tem sentido, logo, o homem existe a partir do contexto de suas próprias realizações. Portanto, se a existência não tem sentido a consciência disso leva o indivíduo ir em busca de realizações significativas, e com isso, busca dar sentido a essa existência.

Se fosse permitido o desenvolvimento pleno de suas realizações, o homem teria possibilidades de crescimento pessoal muito mais amplas, mas o homem é extinto pelo sistema social, e isso faz dele mero mecanismo carente de todo e qualquer sentido existencial.

Na maior parte da sua existência o homem passa tentando compreender o sentido da vida, questionando o que é a vida, qual a sua verdade.

É necessário que o homem decida de maneira adequada seu projeto de vida, para que o sentido de vida seja pertinente ás suas realizações. Se for de outra maneira ele precisará se adaptar a inúmeras frustrações, e até mesmo a uma existência permeada pelos parâmetros conferidos pela severidade do caminho.

Também o sentido de vida será pobre e limitado, quando as pessoas que escolherem como sentido de vida a realização de projetos inalcançáveis, ou seja, realizações aquém de suas possibilidades, e isso, acarretaram em muito sofrimento. Mas também, é através do sentido de vida que sentimentos podem ser avaliados e superados de modo livre e autêntico.

Transcendência:

O homem tem a capacidade de transcender, ultrapassar seus limites corpóreos. Ao imaginar, alcança horizontes possíveis somente por sua capacidade de transcender, e assim, é pertinente dizer que o homem não é um ser estático, pois é um ser em constante desenvolvimento. E através da transcendência o homem desvenda a totalidade de suas possibilidades existenciais, possibilidades que não se acabam ainda que a existência esteja acomodada, imóvel perante as alternativas da sua existência.

Contudo, a existência é um constante “vir a ser”, um contínuo “ainda não” com possibilidades de um “poder ser”, logo, ao transcender nos lançamos para além das próprias possibilidades da existência.

Autenticidade:

Autenticidade em um sentido mais amplo é a vida autêntica, que se baseia em uma apreciação exata da condição humana. Logo, para Heidegger “o ser que existe é o homem”, isto significa que as pedras são. No entanto não existem, assim como, as vacas são, mas não existem. É a consciência que diferencia o homem dos outros seres.

Sartre salienta que o homem que vive de maneira autêntica, é aquele que se submete á conversão da angústia e assume sua liberdade. Tanto para Sartre como para Heidegger, “o homem autêntico é o que reconhece sua dualidade radical entre o humano e o não humano, que reconhece que estar no mundo não implica estar no meio do mundo”.

Angústia:

Para o existencialismo a angústia não é um sentimento negativo, é uma experiência preciosa que surge quando tomamos consciência da nossa condição humana. É um sentimento que nos amedronta diante do “nada” existencial. A morte considerada como única potencialidade existencial, determina uma angústia inerente á própria condição humana. A consciência da liberdade, também é angústia, pois, o homem deve estar sempre consciente da liberdade, dessa forma, está em permanente angústia.

A angústia do aqui agora, é a angústia de ser indivíduo de uma determinada sociedade, com uma história individual em uma época histórica e em certa região do espaço.

Logo, “O homem é um ser arrojado que, uma vez lançado ao mundo, terá que, na mais absoluta liberdade, buscar condições existenciais que possam trazer novas perspectivas á própria vida”.

Amor:

O amor para o existencialismo se difere de outros princípios filosóficos como, sobretudo do humanismo, que acredita que o amor é um meio pelo qual o indivíduo se identifica com o gênero, deixando de ser o intelecto para ser algo predominado pela empatia ou por alguma emoção mais forte.

Segundo Mareei e Jaspers, o amor é uma relação pessoal entre dois seres concretos, não podendo haver relação pessoal entre um ser humano individual e a abstração da humanidade. Logo, a pessoa ao se sacrificar em nome da humanidade, mostra sua incapacidade de amor pessoal. Comungando com os humanistas, o amor universal depende de algum tipo de identificação com os outros, e aceitar o outro como semelhante é algo muito difícil de ser vivenciado e dimensionado.

O amor deve ser considerado um processo dialético, uma entrega onde as pessoas amam para serem amadas, e isso exclui as formas de entrega em que não existe simetria e troca.

Para outros, o amor é o próprio sentido da vida, pois afirmam que a vida existe a partir do amor e que apenas este, da luz e cor à própria existência. O amor como forma de renúncia e entrega que gratifica as atribulações da vida.

As diversas definições dadas ao amor fazem com que muitas vezes alguns atos consistam em ser chamados de amor, se distanciando dos fatos. E também determinados envolvimentos afetivos, ao serem chamados de amor perdem sua essência.

No entanto, o amor é o que se sente diante duma intensa emoção até fatigar, ao contrário do que se define e se conceitua pela razão. O amor não existe como valor absoluto ou fenômeno real, o amor se existente, é sentido de forma única e finita. “Amor é um sorriso de criança com seu olhar de esperança; é o trem que parte ruma ao desconhecido, levando sonhos e ilusões daqueles que ficam e daqueles que vão. É o nada e o tudo, mas nunca o princípio sempre o fim”.

Segundo Sartre, algumas atitudes humanas, como o desejo físico, a indiferença e o amor, é de forma ou de outra, alguma modalidade de sadismo ou masoquismo, e todas estão fadadas à frustração, em última análise pelas mesmas razões. Querer ser amado é querer colocar-se para além de todo o sistema de valores do outro, e ser tomado como condição de toda a valorização é o fundamento objetivo de todos os valores. Por exemplo, a amante exige que o amado lhe sacrifique, em seus atos, a moral tradicional e se preocupa em saber se o amado trairia os amigos por ela, se roubaria por ela, se mataria por ela, etc.

Contudo, o próprio desejo como se o desejo fosse arbítrio existencial, é uma forma de tentar fazer do amor expressão de tantas outras coisas que transcendem a própria conceituação dos fatos.

Segundo Angerami (2007), “amor é sentimento que torna dócil e meigo o próprio ódio: nada, nem ser existente, resistem ao encanto de sua fragrância e magia. E como sentimento, sentimento capaz de dar formas concretas ao abstrato, é a própria esperança, capaz de escorraçar o ódio dos corações humanos”.

Tédio Existencial:

O tédio existencial é um tema pertinente ao se refletir sobre o homem contemporâneo. Já que o tédio existencial é um dos aspectos que mais sofrimento tem legado à existência, estando sempre presente, embora não fundamentalmente com essa definição na prática psicoterápica.

Deste modo, o tédio existencial se caracteriza como sendo uma situação em que o homem sofre a dor de ver o tempo passar, sem estar se realizando e estendendo suas possibilidades. A cada dia um número maior de pessoas sofre com isso, até mesmo em níveis orgânicos, logo, a consciência de que as possibilidades da vida não estão sendo atingidas, seja por dificuldades existenciais impostas socialmente, seja pela própria falta de assumir essas possibilidades como parte inerente à existência.

É impossível excluir o tédio, pois ele não é uma entidade que vem de fora e se instala em nós, mas podem-se ouvir seus avisos e partir para a ação, ou deixar que ele se instale como uma neurose. Para algumas pessoas o tédio existencial significa aniquilamento, a corrosão lenta da própria solidão; para outros, foi o último aviso que os levou à libertação e ao crescimento.

Culpa:

A culpa é também um tema discutido pelos existencialistas como pertencendo ao ser como tal, e não um sintoma que o constitui. Quando o homem questiona a realização de suas possibilidades existenciais, quando renuncia à sua liberdade humana , é nesse momento que a culpa se faz presente.

A culpa se apresenta também quando enfrentamos outros homens sem respeito à sua condição humana, ou seja, quando aniquilamos as possibilidades existenciais dos nossos semelhantes.

A culpa se transforma em um sintoma ou patologia, quando a culpa ontológica não é assumida como tal.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.


Angerami, Valdemar Augusto - Camon. Psicoterapia existencial. 4ed.rev. São Paulo: Thomson, 2007.


Angerami, Valdemar Augusto - Camon. Psicoterapia e subjetivação: uma análise de fenomenologia, emoção e percepção. São Paulo: Thomson, 2003.

HEIDEGGER


A fenomenologia[1] de Martin Heidegger (1889-1976) nasceu como uma alternativa ao que parecia ao filósofo enclausurar o pensamento ocidental: a metafísica tradicional e o positivismo. A metafísica era a de Platão, na Antiguidade, e tipicamente a de Descartes, nos tempos modernos. O positivismo era não só o de cunho filosófico-sociológico, mas também e principalmente o positivismo lógico, interno à escola da filosofia analítica e exposto pelo Círculo de Viena. Criticando essas escolas de filosofia, Heidegger retomou o que seria o pensamento ontológico, isto é, a busca de uma filosofia que pudesse “desvelar o ser” – o que é. Essa filosofia deveria nos tirar da experiência envolvida com o pensamento de características dualistas da metafísica e do positivismo.
• Mas o que era o dualismo no pensamento, que desgostava Heidegger?
• Heidegger viu na metafísica, segundo o modelo platônico-cartesiano, o nascimento do pensamento dualista, expresso sempre por dicotomias. Em Platão, a dicotomia privilegiada foi a de real-aparente. Nos modernos, a dicotomia real-aparente ganhou uma cobertura epistemológica, gerando a dicotomia sujeito-objeto. Esse tipo de pensamento teria se casado com o Humanismo. O fruto dessa união teria provocado um enfraquecimento da filosofia – o desvio de seu caminho autêntico. Isto é: o desvio de toda a reflexão ocidental.
• Os modernos, imaginando terem se libertado da metafísica – e este era o ideal positivista – teriam sucumbido a uma nova forma de metafísica, aquela em que o projeto cartesiano seria o modelo par excellence. Heidegger chamou a metafísica moderna de “metafísica da subjetividade”.
• modernidade teria reduzido a filosofia a uma discussão sobre a relação, tipicamente epistemológica, entre sujeito e objeto. Segundo Heidegger, o sujeito foi definido como o substrato, o que subjaz a tudo, capaz então de gerar ele próprio o objeto. O objeto, por definição, só é objeto para um sujeito. O sujeito representa para si e em si o objeto – ou como algo que é descoberto ou como algo que é criado pelo sujeito. Até aí, meio problema. O problema mais desagradável teria sido a aliança disso tudo ao Humanismo.
• Com essa aliança, o sujeito passou a ser o homem, e o objeto o mundo. Tudo que se faz no mundo se faria para o homem enquanto sujeito; ou melhor dizendo: o homem seria o palco do mundo e, ao mesmo tempo, o legitimador de tudo que efetivamente existe. O que existe não existiria por si, mas apenas para o homem-sujeito e no homem-sujeito. O mundo todo teria passado a ser não mais o que se faz presente, mas o que é re-presentado no palco chamado homem. Este, o sujeito, seria o fundamento de tudo. O mundo todo teria se transformado, então, em concepção do mundo ou imagem do mundo – aquilo que o homem produz para si mesmo, em seu palco que, enfim, seria o próprio mundo.
• E Heidegger não parou nisso. A noção de representação não poderia deixar de trazer, junto, a idéia de representação exata, isto é, a verdade. Ele viu a noção de representação exata – a verdade correspondencial – como o que é produto do homem ou como o que é encontrado pelo homem. O que isso implicou? Simples: se tudo ganha a propriedade de existência na medida em que é re-apresentado pelo homem, tudo se comporta, ontologicamente, enquanto o que é passível de manipulação – em todos os níveis – pelo homem. Isto é, o sujeito, que é então o homem, não tem outra função que não se relacionar com o objeto. Assim, tudo no mundo, se é para o sujeito, nada é a não ser objeto. O mundo, e o próprio homem nele, são transformados em objetos – em algo manipulável. O homem é o manipulador do homem. Eis no que desembocaria o Humanismo.
• Ao seguirmos este raciocínio, três conseqüências emergem sem dificuldades, especificamente nos campos filósofo, cultural e da vida cotidiana. Na filosofia, a situação denunciada por Heidegger teria produzido a hegemonia da epistemologia: a pretensão de se estabelecer uma teoria para descrever como que o homem descobre ou produz o saber, o que nada seria senão a manipulação em pensamento do meio ambiente. Na cultura, isso teria produzido o domínio da ciência sobre outras manifestações. O resultado: a preponderância do tipo de saber exclusivamente metodológico sobre qualquer outro tipo de saber. No âmbito da vida cotidiana, a tecnologia teria se tornado comandante de tudo o mais. A tecnologia, enfim, teria se transformado no afazer par excellence do homem moderno. Todas as coisas que nos cercam teriam assumido uma única característica, a de ser recurso – o que “rende” e que “não rende”. Nós mesmos nos veríamos assim. Pela educação, principalmente, estaríamos sempre procurando sermos transformados em elementos mais habilidosos para nos mostrar como recurso, tais como os objetos ao nosso redor. Todo nosso propósito seria o de nos fazermos passíveis de troca. Um propósito que pudesse ser chamado de essencial, isto é, imanente às entidades do mundo, teria desaparecido na medida em que nós e todas as coisas do mundo simplesmente teríamos passado a pertencer ao campo da circulação dos objetos imposta pela tecnologia.
• Com a fenomenologia, Heidegger quis escapar desse mundo em que nosso encontro com as coisas e conosco mesmo nos faria imediatamente manipuladores e, então, dominadores e dominados ao mesmo tempo. A manipulação e a dominação implicariam em violência – violência física inclusive. Essa violência teria um corpo bem determinado: a cabeça seria formada pela filosofia enquanto epistemologia ou como “metafísica da subjetividade”, o seu coração seria a ciência e, enfim, as mãos seriam a tecnologia. A violência não seria ilegítima, uma que tudo teria se transformado em peça, em recurso, em coisas que rendem ou não rendem. E tudo que é recurso, coisa, poderia ser violentado sem grandes reclamações. Como a fenomenologia tiraria seu adepto dessa condição?
• Heidegger propôs que viéssemos a perceber o quanto a filosofia como epistemologia, a cultura como Humanismo e a ciência como tecnologia poderiam ser deixadas de lado para que pudéssemos voltar a conviver com o que teríamos perdido: o ser – aquilo que é e que se mostra, e não o que é representado. Que caminho seguir para realizar algo assim? A filosofia que retoma a linguagem e dá a devida atenção a ela deveria apontar um de nossos caminhos. A filosofia poderia se voltar para a linguagem, mas de um modo completamente diferente do que estaria sendo ensinado pelos filósofos analíticos. Nenhuma análise da linguagem daria bom fruto. Não teríamos de reduzir a linguagem para que ela ficasse como que um código simples e, então, pudesse ser colocada em paralelo com o que seriam a sensações, para nos dar o que seria chamado de “contato real com o mundo” – este seria o projeto da filosofia analítica, na sua versão positivista; o projeto inimigo de Heidegger.
• Teríamos de voltar a experienciar a linguagem segundo o que aparece, segundo o fenômeno da linguagem, de modo a deixar aquilo que é – o ser – se manifestar em sua morada. Deveríamos deixar a linguagem se mostrar como ela é – como o que fala para nós e por nós, e não o que é falado segundo nosso comando de pretensos sujeitos.
• Um exercício pode levar ao entendimento do que Heidegger planejou para escapar da condição moderna e deteriorada em que estaríamos vivendo. Por exemplo, olhe você para determinada paisagem na sua janela e comece a descrever o que vê. Perceba que cada coisa que enuncia – prédio, carro, árvore, cachorro – não indica uma experiência sua com o que é enunciado, por sua deliberação. Perceba que cada palavra enunciada já estava dada antes, criada e estabelecida junto de toda uma rede de outras palavras; ou seja, tudo que você aprendeu como sendo uma semântica e uma sintaxe que dão o norte, o rumo, o conteúdo e tudo o mais do que pode fazer ao falar do que fala. Todavia, a paisagem e tudo nela podem deixar de serem percebidos como nomes dados por você, e podem aparecer como efetivamente são. Isso tudo é o que a linguagem diz; e a linguagem é essa rede anterior a você. Essa experiência fenomenológica pode ocorrer, se você ouvir a linguagem. É ela, a linguagem, que fala, e não você que fala com ela. Nela, na linguagem, há a experiência originária – mas não é a sua experiência se você não a escuta. Não é a experiência autêntica se você, em vez de escutar a linguagem, escuta apenas a você mesmo falando. Efetivamente, a experiência fenomenológica mostra que caímos nela, na linguagem, e ela fala por nossa boca. Não enxergamos nada do que pensamos que estamos enumerando e falando em uma descrição, pois o que efetivamente ocorre é a linguagem falando. Então, o melhor é prestar atenção nela e, com sorte, ouviremos o que é – o ser que se manifesta em sua morada, a linguagem. Olhamos para a janela, mas não vemos o que a ciência diz que vemos e o que imaginamos que seria uma experiência. Vemos a luz? Não! Vemos uma coisa. Mas que coisa? A ciência diz que é a luz, por meio de ondas, atinge a coisa e, então, pega nossa retina – e assim vemos a coisa que está diante de nós e emitimos um som com o qual damos nome àquela coisa. É isso? Nada disso. Não vemos a luz ou ondas. E a coisa que vemos só se delimita, só ganha contorno, só recebe algum significado por já estar prenhe de significado na teia da linguagem, e de modo algum fomos nós os autores do significado. Em uma experiência autêntica, para além do que a ciência ensina que é a experiência, vemos coisas que são o que são por estarem se manifestando como som emitido pelas palavras da linguagem; ou seja, ela própria, a linguagem, usando nossa boca, nos fala e fala para todos – nela, em sua rede, há o significado e, então, o som se faz som, palavra. Temos a capacidade de ouvi-la? Essa capacidade de ver o fenômeno da linguagem, nessa dimensão profunda que escapa do modo moderno de conversar (este que implica no sujeito-objeto e na representação) foi o método Heidegger. Foi isso que, em boa medida, ele propôs como filosofia.
Paulo Ghiraldelli Jr, o filósofo da cidade de São Paulo
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[1] As raízes da fenomenologia podem ser encontradas no filósofo alemão Franz Brentano (1838-1917). Seu desenvolvimento se deu com outro filósofo alemão, Edmund Husserl (1859-1938), com que Martin Heidegger (1889-1976) estudou. Essa escola de pensamento alimentou uma corrente que teve muitos adeptos no decorrer do século XX, especialmente na França – o existencialismo. Pertenceram ao existencialismo Jean Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986).

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

RESSIGNIFICAR O VER

O GUARDADOR DE REBANHOS

FORMAÇÃO CLÍNICA


(aos alunos que estão se formando)
Formação não é adição de know-how: é a transformação do nosso lugar de terapeuta.
Como nos lembra Gilberto Safra, formar é cultivar a forma, isto é, o que é essencial, o que é inerente à condição humana, retirando os excessos que o conhecimento baseado numa abstração conceitual cada vez maior tem adicionado ao saber sobre o homem.

A perspectiva clínica nasce da certeza de que o homem contemporâneo adoece pelo próprio processo de afastamento do que lhe é originário e fundamental (processo que Hanna Arendt nomeava como dispersão), mal este que tem afetado também as próprias perspectivas clínicas atuais que tentam lidar com o sofrimento humano.

Gilberto Safra tem buscado inspiração nos autores que se voltam para o respeito ao que é incondicionalmente humano. E é a busca deste lugar ético e político que o leva a pesquisar entre os místicos, na filosofia (mais precisamente na hermenêutica e na fenomenologia) e na literatura, além de na própria psicanálise, a linguagem experiencial que nos abre as portas para um encontro curador com nossos clientes.
Recomendo a leitura das obras deste autor.

CONTEMPORANEIDADE


(Deise de Almeida Gomes)
Descobrimos o mundo através do outro. Pode-se pensar na importância de outras pessoas para a interação social, e através destas relações sentidos vão sendo produzidos acerca do ambiente que nos rodeia. Pelo contato, gestos, emoções e comunicação se desenvolvem e o ato de atribuir significado à ação, aos sentimentos, aos gestos surge da interação. Com isto, nos constituímos continuamente, sendo as relações, o contato, o processo de socialização de considerável repercussão sobre a construção do eu ou de si mesmo.
Não pretendo, aqui, questionar a relevância das relações comentadas acima sobre a subjetividade, mas ampliar a discussão sobre a constituição de si mesmo incluindo outras vozes neste processo, reconhecendo e admitindo o surgimento de novas formas de subjetividade e sua repercussão nas relações com o outro e com o mundo.
Gonçalves (2003) levanta esta questão. Segundo o autor, um aspecto considerável na cultura contemporânea se refere ao problema da subjetividade. Assistimos a formação de um novo sujeito e novas subjetividades parcialmente em virtude das novas tecnologias de comunicação. O autor chama esse processo de constituição de si mesmo como sujeitos de práticas de subjetivação, na medida em que ele entende que o sujeito organiza os vários elementos heterogêneos disponibilizados pelo social para constituir uma forma de si mesmo.
Turkle (1997), Sodré (1996) e Canclini (1995) discutem esta questão. Os autores relacionam as novas formas de sujeito às novas tecnologias de comunicação. Cria-se um contexto na contemporaneidade que coloca o sujeito em uma nova relação com sua própria identidade. Sujeito este que é passível de ser comparado a um mutante, uma vez que não é linear nem rígido em sua formação, mas compreende múltiplos eus. Por fim, chamam a atenção para a historicidade do sujeito, não sendo possível compreendê-lo livre de seu meio e do momento em que vive.
A fragmentação e a virtualização das experiências são aspectos de um mundo em que a dimensão espaço-tempo é relativa e mutável, com relações afetadas tanto no domínio eu - outro quanto na dimensão do corpo. Essas transformações agora se integram nos aspectos formadores dos indivíduos; a esfera cultural e tecnológica.

A subjetividade compreendida como as particularidades do sujeito tecidas em sua relação com o mundo, está permeada pelo contexto bio-sócio-político-econômico-cultural-tecnológico. Na forma de um fluxo em contínuo devir, a subjetividade desenha diferentes e criativas paisagens que já não correspondem a imagem do sujeito moderno, portador de uma essência naturalmente estática (SUNDFELD, 2000, p.254).

Diante disso é preciso refletir sobre a repercussão desses novos elementos que a cultura contemporânea fornece aos sujeitos. Pode-se perceber a impossibilidade de compreender o homem e suas mudanças desde uma perspectiva linear, mas dentro da complexidade que afirma o caráter dinâmico, relacional, dialógico que funda o ser vivo em sua dimensão ontológica. Para Sundfeld (2000) adotar o pensamento complexo no exercício da prática psicológica não reflete apenas a redimensão das ferramentas clínicas, mas traduz sobretudo um reposicionamento filosófico e existencial. São novas imagens e novos jeitos de se relacionar, o contato com o outro tão fundamental para a constituição de si mesmo é agora dimensionado para uma linguagem própria desta relação com um outro que em alguns contextos possui ausência de corporeidade.
Novas formas de subjetividade, novas formas de interação e de compreensão das questões humanas. Com o advento da tecnologia surge a cultura da globalização e há que se refletir sobre as conseqüências destas transformações nas relações humanas e na forma de se viver.
Conforme Sundfeld (2000), o mundo está vivenciando novos processos, como a globalização, o avanço tecnológico, a comunicação à distância e a virtualização das relações. Com estas constantes novidades e transformações é exigida das pessoas uma contínua adaptação e assimilação das informações. As experiências parecem ser transitórias e as sensações fugazes, não sendo possível tempo e espaço para a significação do vivido. Com tal ritmo, as pessoas tendem a simplesmente acolher as demandas que surgem, sem espaço para reflexão e produção de sentido.
Quais valores mudaram? O que está por trás de nossas relações com os outros e consigo mesmo? Para onde caminhamos? De que forma, com quem e com qual sentido? Muitos são os questionamentos que podemos fazer a respeito de nossa existência, de nossas relações e de nossas contínuas transformações. Perguntas geram inquietudes, conhecimento, ponto de partida para reflexões e não há outra saída a não ser pensar.
O que parece banal, o que parece inerente às nossas ações, o pensar, é algo que também tem sido questionado e torna-se importante tecer considerações a respeito. Pensamos realmente? Nossas ações são permeadas por reflexão? E o sentido da ação? E o sentido dela para nós mesmos? Ou pensar é algo complicado e que exige tempo? Tempo e pensar são termos que parecem ser pouco relacionáveis entre si. Refletir demanda pausa, mas pausa é incompatível com o tempo, ou a constante falta de tempo, imperativo em nossa vida acelerada.
Será que o que ganhamos em tecnologia, em facilidade de acesso a coisas diversas, a disponibilidade inumerável de informações, a possibilidade ampliada de relações interpessoais, perdemos também em outros aspectos? Este é um questionamento a se pensar. Reflexões que não têm a pretensão de se impor como verdadeiras, mas que se situam em uma das possibilidades possíveis dentro da multiplicidade de interpretação acerca do tema a que me proponho.
Tendo feito esta ressalva, busco relativizar os ganhos advindos da cultura contemporânea. Ganhos e perdas se situam em um continuum cuja atribuição de sentido depende do olhar daquele que observa. Não pretendo questionar a importância e os benefícios da cultura que vivenciamos, mas refletir criticamente as transformações na relação eu-outro-mundo.
Possuir tecnologias diversas, virtualizar relações, entrar no movimento acelerado de vida, consumir, saber, ter; praticamente não podem soar mais como novidades e progressivamente o possuir torna-se regra e não exceção. Torna-se difícil assimilar modificações, pois isso exige tempo e a adaptação deve ser rápida. Agimos muitas vezes como se estivéssemos no “piloto automático” e ir contra esse automatismo que internalizamos gera estranhamento, torna-se o diferente. Será que é por isso que constantemente nos excluímos de nós mesmos para nos incluirmos socialmente?
Busco a discussão de novas formas de subjetividade e isso nos remete a constituição do eu, mas questiono qual é o tamanho e o preço do espaço reservado para a expressão de algo subjetivo em uma sociedade que não raro desindividualiza, despersonaliza o diferente em favor da padronização.
Necessidades são socialmente criadas e passa-se a acreditar que realmente são necessárias, seja para a socialização com outros, seja pela própria felicidade e conquista. A título de ilustração, trago os supermercados 24 horas, a contínua busca por eletrônicos do último modelo, a superprodução e publicação acadêmica que não geram conhecimento, mas pontos, títulos, status, as marcas como fazendo parte das descrições das pessoas. É a valorização de um possuir e de um saber em detrimento de outros valores humanos e saberes.
Se o saber do outro é sempre maior do que o meu, eu preciso dele para me informar sobre minha própria vida. Aqui ganha lugar as orientações tecnicistas. Busca-se receitas e modelos, é mais fácil de se seguir e executar. Na ausência destes, há uma sensação de estar perdido. Quero ser ou ter o que é idealizado. E certamente nossa sociedade cria os padrões ideais em cada contexto e os que não se enquadram são inferiores e excluídos.
Conforme Cortella (2006) esse modo de se viver e as crenças que surgem a partir disso acaba por considerar toda essa transformação do mundo e de nós mesmos como corriqueira e normal, o que minimiza reflexões e fecha outras possibilidades. Esperar pelos acontecimentos, viver cada coisa no seu tempo, ter curiosidade ativa que leva a um processo de descobrir, é incompatível com uma sociedade que vive o futuro e prega o parâmetro velocidade. O referido autor questiona “será tão difícil pensar enquanto se continua fazendo outras coisas (...) Ora, pensar é uma atividade contínua, e não um evento episódico!”
Possivelmente é difícil mudar o igual, o que vigora, sendo mais promissor encontrar formas diferentes de se viver o igual e assim alterar a relação com o mesmo. As reflexões que propus não pretendem transformar o que muitas vezes não se pode mudar, mas representam um convite a outras possibilidades mais ricas dentro do que confere sentido a cada um. Foi um parar para pensar. Tarefa para toda a vida.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

SER HUMANO É ...




(Carita Portilho)
Ser humano é ser contradição, devir, dialética, encontros e desencontros. Ser humano é saber o que é melhor para si, é encontrar-se ao se perder, é possui a capacidade de se organizar. Ser humano é ser criativo e ao mesmo tempo não conseguir vislumbrar saídas para um problema recorrente.
O ser humano é um todo composto de partes que se interrelacionam constantemente. Ser homem é buscar sentido para si e para o mundo. Ser humano é relacionar-se consigo e com os outros, é ser cultural, social, histórico. Ser humano é possuir um corpo, ter cognição, subjetividade, afetos. Ser homem é construir tramas, é viver dramas. Ser humano é permanecer em constante construção e desconstrução, é nunca estar acabado.
Ser humano é mistério. Viver o mistério é viver o desenvolvimento humano:

O desenvolvimento humano, acontecimento absolutamente único para cada indivíduo, é o lugar onde o mistério tomou corpo como uma série de mediações, de “modos” e de problemas; lugar em que os problemas individuais podem se fechar em seu caráter de problema, colocando-se efetivamente em oposição ao mistério, ou podem tornar-se dinamicamente uma encarnação, uma presença transparente do mistério e uma ocasião de crescimento na manifestação da realidade do mistério (IMODA, 1996, p.14).

O curso do desenvolvimento humano constitui o próprio mistério através do qual o homem se torna aquilo que é mesmo que não pudesse sê-lo. Viver o mistério significa desenvolver-se, colocar-se entre a miséria e a dignidade, entre o ser e o não ser, entre o temporal e a eternidade, entre o corporal e o espiritual, entre o finito e o infinito (IMODA, 1996). Nesse sentido, todos os homens vivem a realidade do mistério.
O mistério do ser humano manifesta-se no tempo, no riso e na dor, na busca, na solidão e na insatisfação.
O homem não é mais o que foi ontem e ainda não é o que será amanhã, ou seja, o tempo é o choque entre o ser e o não ser. Concomitantemente ao fato de o tempo escancarar a finitude do homem ele traz consigo a esperança a respeito do novo que há de vir. Nesse sentido, a temporalidade constitui-se em uma dimensão que marca fortemente o mistério humano.
O riso é mais uma das manifestações do mistério humano. Apenas quem consegue identificar-se com algo e, ao mesmo tempo, afastar-se dele é capaz de rir. O homem sorri porque pode de algum modo ser e não ser parte de um certo mundo, ele consegue manter-se dentro e fora de uma mesma situação. “É ainda a relação entre o parecer e o ser, considerada sob a forma de incongruência entre os dois, que suscita e sustenta o riso” (IMODA, 1996, p. 29).
A dor é um fenômeno que revela o mistério humano ao propiciar descoberta e crescimento:

É na dor e na falta (ausência) que se aprende a distinção entre o ser e o dever ser, entre o real e o ideal e se vive a divisão interna, manifestando até que ponto se pertence a dois mundos que desejaríamos reconciliados, mas incapazes de se reconciliar: um mundo de aspirações infinitas e um mundo de dados e de fatos, que resistem e limitam, restringem, assediam e impõem fronteiras reconhecidas freqüentemente como violentas (IMODA, 1996, p. 36).

Apesar da dor se mostrar muitas vezes como negativa, ameaçadora ou algo que faz sofrer, é ela que nos coloca em contato com a realidade. A dor é o lugar onde o mistério se manifesta justamente porque se coloca ao mesmo tempo como um caminho necessário para que a realidade coloque seus limites. Nesse sentido, “evitar a dor significaria, de modo absoluto, evitar a vida” (idem, 1996, p. 37).
O mistério do ser humano também manifesta-se na inesgotável necessidade de buscar, de descobrir, explorar. Graças à busca, ao contato com o novo, uma pessoa pode passar a ser aquilo que ainda não foi. No entanto, para que seja possível descobrir horizontes e mundos novos é preciso pertencer a um mundo bem definido de ligações, afetos e interesses, ou seja, busca-se ir além, conhecer o estranho, o diferente, mas é necessário ter sempre um lugar seguro para onde se possa voltar.
A solidão é um outro componente do mistério humano. O homem é marcado pela contradição de buscar estar com o outro, construir uma intimidade e também fugir de contatos íntimos, da proximidade, da cumplicidade. Essa fuga se configura nos momentos em que o contato com outrem é percebido como ameaça ou algo intrusivo. A solidão aqui é vista como uma busca ativa por estar consigo mesmo, conhecer-se, entrar em contato com o que é seu: os medos, as vontades, os desejos e os sentimentos.
Em última análise, coloca-se o mistério manifestando-se através da insatisfação, da inquietação e da dúvida. O homem necessita de movimento, paixões, atividades, perguntas: quando o ser humano não pergunta mais, cessa de algum modo de ser mistério para si próprio e, desse modo, deixa de ser ele mesmo. As vitórias, as conquistas e o sucesso não põem fim à inquietação que se mostra constante na existência humana.
Se se concorda que o ser humano é mistério, aproximar-se dele significa, além de uma atitude de admiração e de conhecimento, uma atitude de respeito pela liberdade e pelas escolhas feitas pela pessoa. Nesse sentido, a clínica torna-se um espaço de cuidado, onde o desenvolvimento é o lugar em que o mistério toma forma.

REFERÊNCIAS:

IMODA, F. Psicologia e mistério: o desenvolvimento humano. São Paulo: Paulinas, 1996.

OLIVEIRA, R. G. de. Especificidades da relação terapeuta-cliente no Plantão Psicológico. Disponível em: http://www.gestaltsp.com.br/textos/especificidades.htm. Acesso em: 22-01-08.

MELANCOLIA



Houve no passado e continua no presente um movimento cultural que se opôs ao que se convencionou chamar de “espírito do capitalismo”:o romantismo. Precisamos superar o sentido convencional de romantismo que o identifica com uma escola literária ou artística. Romantismo é algo mais complexo e profundo. Trata-se de uma cosmovisão, de uma forma de habitar o mundo, não apenas prosaicamente com artefatos, máquinas, ordenações sociais e jurídicas mas principalmente habitar poeticamente o mundo ao articular a máquina coma a poesia, o trabalho rotineiro com a criatividade, o interesse com a gratuidade, a objetividade nos conhecimentos com a subjetividade emocional, o pão penosamente ganho, com a beleza fascinante das relações calorosas. Isso deve ser resgatado.

A sociedade da tecno-ciência e do conhecimento nos enviou ao exílio, roubou-nos o sentimento de um lar e de uma pátria e principalmente nossa capacidade de nos comover, de chorar, de rir gostosamente e de nos apaixonar pela natureza e pela vida. Somos condenados a viver sob o “sol negro da melancolia”. Mas não apenas os românticos (em termos analíticos) são afetados por esta melancolia. Mas também os adeptos da cultura imperante. Um devastador vazio existencial marca milhares de pessoas que pelo consumo desenfreado ilusoriamente o procuram preencher.

Esta condição humana faz suscitar novamente a utopia. Esta nasce da convicção de que o mundo não está fatalmente condenado à melancolia. Há em nós e na sociedade virtualidades ainda não ensaidas que, postas em pratica, podem reencantar a vida. Eis uma utopia necessária, mensagem perene do romantismo.

Leonardo Boff